sexta-feira, maio 02, 2008

Crôniquinha do Aff

OS ABACATES DO MONTE EVEREST DE BELO HORIZONTE
(por Affonsinho)

Acho que era época de férias em Belo Horizonte. Mas férias de criança, daquelas bem coloridas! Do tempo das ruas de pedra e das poucas construtoras; das muitas bicicletas e dos papagaios ao vento; das bolas de meia, de gude e da meninada nas ruas, de cara lambuzada de alegria.

O leite ainda saía da vaquinha, espécie de caminhão carregado do produto, que atraía as donas de casa e suas variadas cumbuquinhas. O padeiro, Seu Marcelino, chegava aos berros:
- Áaarrrrêêê...
E trazia pão, chicletes ping-pong, maria-mole e outras delícias.
Os vendedores dos saborosos beijus desciam a rua no ritmo de suas catracas, batucando seus jingles e divulgando suas mercadorias. Havia ainda os grudentos pirulitos puxa-puxa e uma voz um tanto vibrante que passava na esquina quase cantando:
- Larââââânja serra d'agua...
O Chicabom já existia, mas bacana mesmo eram os picolés caseiros com sabores estranhanhíssimos, como creme de ovos, coco queimado, creme holandês (todinho cor de rosa!) e também os de uva que, logo na primeira lambida, se transformavam em blocos de puro gelo, totalmente sem gosto! ...


O agitado bairro de Copacabana, no Rio, ainda belíssimo no inicinho dos anos setenta, não era bem um lugar para crianças. Carros, buzinas, muita gente e até mesmo artistas da ainda jovem Rede Globo, além de jurados do grande quebrador de Lps, Flavio Cavalcanti, passeavam bem debaixo de minha janela do primeiro andar e recebiam meus eufóricos tchauzinhos.
O Rio de Janeiro continuava lindo, mas infelizmente, as ruas de Copacabana, não haviam escrito a história de meus pais. Lá não moravam meus primos, tios, avós e o mais importante: a minha liberdade. Tudo isso estava em Belo Horizonte, ali pelas Ruas Maranhão, Grão Pará e Ottoni. Um dia eu ainda viveria naquele paraíso...
Mas ainda não seria no ano de 1968 quando, de férias, com meu pai, hospedados os dois na casa do saudoso e divertidíssimo Tio Bilé (que se autodenominava “o rei das muié!”), fomos, juntamente com meu primo Paulo, visitar um pequeno lote comprado por papai num lugar ainda muito distante, chamado Guarujá, (hoje o conhecido bairro Floramar). Enquanto meu pai e o Alcino, caseiro, conferiam nossa “grande plantação” de abacates, eu e Paulo corríamos e brincávamos pela selva perigosíssima de nossa imaginação, enfrentando terríveis bandidos e feras de toda espécie.
O lote, que para mim era mais ou menos do tamanho da África, devia ter somente uns quinze metros de frente por trinta de fundo e era uma pirambeira só.
Num determinado momento, quando eu e Paulo, os dois heróis, já havíamos escalado quase todo o Monte Everest do ex-bairro Guarujá, interrompemos nossa viagem para observar papai e o Alcino colhendo, sem parar, os abacates de “nossa plantação”.
De repente, o Paulo, tentando ser simpático, faz um comentário que quase o deixa sem primo! Quando estávamos no topo do topo, meu parceiro de escalada, com sua grande tendência para os cálculos matemáticos, achou que não sobrariam abacates para a “preservação do meio ambiente” e resolveu dar um grito ecológico que, por simples excitação do momento, saiu meio esquisito e um tanto engraçado, com as sílabas trocadas:
- Ôôôôuuu, vai abacar com os acabates!!!
E não sei o que aconteceu comigo na hora. Parece que tive aquilo que se chama, na linguagem popular: frouxo de riso! Só sei que achei uma graça fantástica, daquelas que a gente só acha quando tem em volta toda a felicidade do mundo. E desandei a rir. Fui rindo, rindo e rindo sem parar até que, de repente, minha gargalhada levou embora minhas forças dos braços e das pernas. Comecei a despencar morro abaixo num passo apressado e sem controle. Uma corrida maluca que já ia virando um tombaço quando, num pedacinho de segundo, fui salvo por uma inesquecível anja da guarda, daquelas que só aparecem para as crianças de cinco ou seis anos de idade.
Pois é, a anja era uma árvore, ou melhor, uma verdadeira fada madrinha, ainda pequena, mas forte, segura, cheia de sabedoria e com os pés totalmente cravados na terra - tudo o que eu precisava naquele momento! Foi ela quem ofereceu seu tronco salvador para que eu me agarrasse e não voasse, sem escalas, direto para o chão duro!
Depois, vieram Paulo, papai e Alcino, meio sorrindo, meio pálidos de susto com meu desmoronamento. Mas o perigo já tinha passado. Caímos na gargalhada com tranqüilidade. Que susto! E que saudade...
Hoje fico um pouco triste com o progresso que acaba, sem dó, com matas, lotes, casas com quintais, a paz e o sossego da nossa querida menina Belo Horizonte. Mas graças ao bom Deus e também a algumas anjas que ficam bem escondidinhas dentro das páginas da vida da gente, este estranho progresso não consegue abacar com os acabates de nossas doces e tão agradáveis lembranças.


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